sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

NÃO DEIXES PARA AMANHÃ…


CRUZ, Paula - Enfermeira na Unidade de Cuidados Paliativos da Casa de Saúde da Idanha

"Março de 2006…

Depois de, durante 1 ano, um grupo de enfermeiros e outros técnicos, em equipa, se terem preparado para cuidar de doentes em cuidados paliativos, no dia 6 de Março iniciamos a nossa caminhada,
todos muito conscientes do desafio que era,
iríamos ter connosco pessoas a morrer
e que tinham direito a que lhe proporcionássemos uma morte digna.

O que é que nos esperava?
Será que íamos conseguir?

A intensidade com que vivemos cada minuto do primeiro dia, era tal, que para nós era como se estivéssemos a viver o primeiro dia do resto das nossas vidas.
A partir daquele dia uma parte de nós tinha a grande responsabilidade
de receber a pessoa na maioria das vezes para morrer
e de transformar esses últimos dias de vida
nos primeiros com direito obrigatório
a uma assistência digna para uma morte tranquila.

Depois de todas as hipóteses curativas serem esgotadas
Eis que chegam até nós…

Cansados do sofrimento
Esgotados por não conseguirem ser donos dos seus dias
Fartos de não poderem fugirem da impotência dos médicos

Assustados por não saberem afinal quantos dias lhes restam
Mas com a certeza de serem muito poucos
Horrorizados por pensarem naquela dor que os acompanha
desde que lhe disseram
Você vai morrer de cancro…
Completamente perdidos no meio de um pântano sem cordas
Pois a sua família vai ficar sem hipóteses de sobrevivência

Habituados a paredes brancas
As enfermarias de 6 camas
As pessoas a gemerem sozinhas na cama ao lado
A terem as suas famílias do lado de lá do corta-vento
Á correria dos profissionais que não têm tempo de parar
Para lhe fazer companhia
Para os ouvir
Para lhe dar a mão

E aqui estamos nós…
Prontos a cuidar destes doentes

O que é que vamos fazer?
Aliviar-lhe o sofrimento:

Para a dor damos o analgésico
Para a agitação a sedação
Para o vómito o antihemético
Para a dor d`alma damos a mão

Claro que sabemos que a maioria destas pessoas
Vão morrer connosco
Claro que sabemos que não podemos
Fazer parar o percurso da doença
Mas também sabemos que a qualidade de cuidados
Que temos para lhes oferecer
Transpõe toda e qualquer perspectiva da cura

Com a D. L..... a D. F...... e respectivas famílias, iniciamos a nossa caminhada.
Seres humanos desesperados,
Com histórias de vida carregadas de recordações.
Sofrimento estampado nas caras.
Pedidos de socorro, conscientes que não teriam resposta por estarem a morrer.
Famílias perdidas, histórias por resolver, sentimentos por partilhar.
Medo do desconhecido, certezas de estarem a terminar.

E nós?
Profissionais de saúde com a prática de curar.

E agora, o que é que nos era pedido?
Por favor tirem-me as dores!
Por favor não quero vomitar mais!
Por favor, ela está com falta de ar!
Por favor tirem-me este sofrimento!

E nos olhares perdidos dos familiares, pedidos de socorro...
Por favor não a deixem morrer ainda!
Por favor, eu quero-lhe dizer que…!
Por favor salvem-na!
E nós?
Nós vamos tirar-lhe as dores.
Nós vamos parar-lhe os vómitos.
Nós vamos tratar-lhe dos sintomas que lhe causam sofrimento.
Mas também estamos aqui para os ajudar a unir as mãos mesmo em silêncio.
Diga-lhe tudo o que ainda não teve oportunidade de dizer…
Diga-lhe que perdoa…
Diga-lhe que a ama…
E nós…!
Para além de cuidadores…somos seres humanos!
A receber pessoas para, passadas poucas horas nos despedirmos…
A receber pessoas que nos fazem reviver alguma dor mal curada…

A receber pessoas que vamos palear, que nos enchem o coração e que quando partem nos deixam a chorar…

Os dias foram passando…algumas duvidas foram ficando…
Afinal não somos os donos da verdade.
Estamos no inicio da construção de um forte,
em que cada pedra usada
é uma descoberta fundamentada,
E que quando assente no chão
já passou pela reflexão de quem está consciente do que quer,
de quem está a fazer tudo para que esta obra embora ainda por muitos anos inacabada, seja digna de crescer com bases humildes e verdadeiras, sem perder de vista a grande missão a que nos propomos.

Como é que os doentes que partiram sentiram a sua morte, só os próprios saberão…
Se conseguimos…não sabemos…
Mas que sofremos…também sofremos…

As famílias…estão connosco.
Fizeram parte do nosso plano de cuidados, fizeram parte da nossa equipa prestadora de cuidados, e ficaram a fazer parte da família da nossa unidade.

Vêem em nós, neste momento tão especial das suas vidas, aqueles que estão imunes de juízo de valores, aqueles que estão aqui para ajudar, para ouvir, para esclarecer…
e para, no momento da partida, dar a mão se eles não chegarem a tempo.

Somos ainda muito bebés, somos ainda muito pequeninos, com um longo caminho pela frente…mas já recebemos tanto em troca do pouco que fizemos…

É um sorriso… de quem entrou a dizer “vou para os terminais”!
É ouvirmos “obrigada por me dar tanto carinho
“ não sabia que seria possível existir um sitio em que ainda nos tratam assim

É, no casal em que a esposa está a morrer, o marido querer-lhe satisfazer o grande desejo de casar pela igreja, querer faze-lo aqui e fazer questão que uma de nós os apadrinhasse…não conseguimos dar-lhe esse sacramento…ela não resistiu ao tempo, mas ele passou a tratar a enfermeira por madrinha de um anjo…

É, o marido de uma doente dizer para uma criança, filha de outro doente, “sabes minha querida, no céu existem os anjinhos que tem asas brancas, cá na terra existem estas senhoras vestidas de branco”…

É satisfazer-lhes os últimos desejos
E aqui estamos nós
Prontos a cuidar e a ser cuidados

Aqui passámos a viver a nossa vida de uma forma diferente
Quem aprende a viver a morte aprende a viver melhor
Cada minuto tem a intensidade de uma vida inteira

Ouvimos com outros ouvidos
Vemos com outros olhos

Podemos ter um longo caminho para percorrer na descoberta dos cuidados paliativos, e durante muito tempo termos que validar quase tudo o que fazemos uma centena de vezes, mas parece-me que dentro do nosso peito já mora a missão da nossa unidade…
"


Este texto foi apresentado pela Enfermeira Paula Cruz da Unidade de Cuidados Paliativos da Casa de Saúde da Idanha durante uma aula de formação em contextos de trabalho no decurso do VIII CCFE da ESEL polo Maria Fernanda Resende. É para mim um prazer poder publicar neste espaço virtual uma experiência tão particular, que para tantas reflexões nos transporta.

O meu muito obrigado Paula por partilhares,também aqui neste blog, connosco algo de tão profundo, inovador e intimista.

3 comentários:

Anónimo disse...

Caro Rui Santos:
O seu blogue começa a ganhar forma, através da qualidade dos conteúdos que vai publicando. Orientado para a reflexão sobre a prática de enfermagem, que galgou novos e prometedores horizontes nos últimos vinte anos, o leigo, como eu, pode recolher nele muitos ensinamentos.
Continue e parabéns.
Alexandre de Castro

FILMES MARADOS disse...

Este sem dúvida foi um ponto marcante do trajecto reflexivo.
Razão e emoção de mãos dadas. Brilhante. É bom ser Enfermeiro

Anónimo disse...

Excelente. Esse teu olhar sorridente de esverdeados olhos fazem-te viver coisas maravilhosas. Prabens Paula.